4.6.07

Vila Cruzeiro: de Quilombo a Favela, da Esperança ao Infortúnio.

Policiais no interior do temível Caveirão - foto O Dia


A ação policial que é realizada há mais de trinta dias na comunidade da Vila Cruzeiro localizada no bairro da Penha no Rio de Janeiro é emblemática das relações históricas mantidas entre o Estado e as comunidades pobres onde a presença negra é marcante.
Antes de ser reconhecida como uma favela a Vila Cruzeiro foi conhecida como o Quilombo da Penha. Formado no final século XIX no entorno da Igreja de N. S. da Penha proprietária das terras de uma antiga fazenda doadas por seu proprietário à Irmandade. A formação do Quilombo se deveu a atuação de um padre abolicionista e republicano no abrigo a escravos fugidos. Um fato curioso ocorrido e também emblemático foi a visita da Princesa Isabel ao Santuário 18 dias antes de proclamada a Lei Áurea.
O santuário tornou-se um importante centro de peregrinação da colônia portuguesa gerando uma das mais importantes e tradicionais festas populares das primeiras décadas do século XX. A própria história do samba passa pela Festa da Penha onde no mês de outubro eram (e ainda são) dedicadas homenagens à santa e se misturavam portugueses com as tradições católicas e negros com o candomblé, a capoeira e o emergente samba.
Já como uma referência popular por sua autoridade religiosa no candomblé Tia Ciata era uma das barraqueiras que compunham a festa atraindo ‘sambistas’ de toda a cidade.
A festa da Penha também foi durante mais de meio século o início do carnaval na cidade do Rio de Janeiro quando eram lançados os sambas e marchinhas em teste junto ao gosto popular para os bailes carnavalescos. Já que a primeira rádio só veio a ser criada em 1923, até então era a festa da Penha o grande difusor do samba e Tia Ciata a freqüentou com sua barraca até sua morte em 1924. A capoeira também teve na Penha um dos grandes redutos de bambas e junto ao samba e ao Candomblé geravam por parte da polícia forte repressão que era aclamada e incentivada pela imprensa contra aquele “pessoal duvidoso”, os conflitos também ocorriam entre negros e portugueses.
A história local é bem registrada dada a sua importância na vida cultural da cidade e sucintamente apontada aqui em seus primórdios por alguns fatos, mas suficientes como prelúdio para a situação dramática em que vive hoje a comunidade da Vila Cruzeiro.

A presença mais notória e recente sobre a Vila Cruzeiro no noticiário se deveu ao assassinato do jornalista Tim Lopes há um ano. E agora, desde há pouco mais de trinta dias quando foi iniciada uma operação policial pela morte de dois policiais militares executados por criminosos daquela região ocorridas no local da morte cruel do menino João Hélio, fato que gerou grande comoção e foi amplamente noticiado e que também contribuiu para estas ações policiais.
Começa aí o último equívoco – se é que se pode usar apropriadamente este termo para expressar a perpetuação da violência do Estado contra populações pobres, indefesas e de maioria negra. O viés racial não é uma vaga conclusão dada à origem da comunidade e ainda hoje majoritariamente negra. Por outro lado, comprovado em inúmeros estudos, a racialização da pobreza e a violência do Estado sobre estas populações. Esta tradição do Estado brasileiro se baseia em um mesmo  componente perverso da política “não-oficial” que identifica na cor da pele e fere na alma da população negra por meio de agressões e humilhações policiais, omissões dos serviços públicos e que é perpetuado no imaginário social pela mídia com as mesmas imagens que no passado se difundia sobre esta “gente duvidosa”.
Se por lado as aglomerações favelas surgiram ao acaso como meio de abrigo e moradia para os muito pobres por outro adquiriu uma função social de prover para a cidade mão de obra fácil e barata para os trabalhos mais simples ou sem qualificação. Nesta função os ‘quilombos urbanos’ em que se transformaram as favelas passaram também a representar uma ‘ameaça’, sem precisarem de um estatuto formal de “vida separada” (apartheid) como representaram os bantustões na África do Sul. Mas cumprindo um papel semelhante até certo ponto, enquanto conviesse ter uma favela por perto ou então expulsá-la de terras valorizadas. Qualquer semelhança com situações atuais sobre terras remanescentes de quilombos não é mera coincidência.
Durante a última campanha eleitoral para o governo do estado o atual governador Sérgio Cabral chegou a declarar que sobre um dos maiores focos de terrorismo sobre estas populações o temível Caveirão não seria mais utilizado para promover a in-segurança pública local. Mas ao contrário, agindo como qualquer político da época da enganação da ‘bica d’água’ tem levado às últimas conseqüências uma política que só tem similar no regime nazista do apartheid. Eleito com expressiva votação e sob uma aliança de forças políticas progressistas o atual governador que chegou a ser apontado como eventual candidato a próxima eleição à Presidência da República tem agora inelutavelmente manchada sua anterior reputação de protetor da terceira idade e dos jovens, imagem sob a qual chegou até ao senado federal.
Não há que se confundir como uma transigência com o crime nem quando afirmamos o que se disse antes nem quando o próprio governador se manifestou favorável ao debate para a liberação do uso da maconha. O que se requer e isso o governador não promove ou realiza é uma política de segurança pública efetiva e democrática e que lhe cabe mais do que tentar legislar sobre o uso da maconha. Mas insinuo que talvez para se penitenciar junto aos setores mais escabrosos da sociedade venha agora revelar como falácias suas afirmações e declarações quanto ao uso da brutal repressão que vitima muito mais a população da Vila Cruzeiro do que o crime que pretende combater. O noticiário reitera diariamente que nestes trinta e poucos dias nenhum dos criminosos foi preso, mas “alguns foram mortos” e dezenas de moradores foram feridos, milhares estão prejudicados em suas vidas sem acesso tranqüilo ao trabalho ou a suas residências, crianças e jovens sem creches e escolas, o pequeno comércio está prejudicado entre outros transtornos que certamente irão gerar traumas psicológicos, ressentimentos e redundar mais ainda, direta ou indiretamente em violência.

Manifestação de moradores da região


Presente na foto acima  o ex-deputado Marcelo Dias (PT) recém nomeado em 2011 Superintendente da Igualdade Racial órgão da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro) 
(Atuallização em 11/5/2011)

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