7.4.13

De escravos a empregados domésticos

Em 1872, escravizados chegaram a ter profissões mais diversificadas como amas de leite, herbalistas, ou até ocupações “letradas”, que exigiam alfabetização, como arquivistas, professores, jornalistas, médicos, cirurgiões

— A perda de mercado de trabalho se deveu a uma elaboração ideológica racista, mais do que comprovada. Os anúncios de jornais pediam trabalhadores que não fossem “pretos”. O poder público apenas distribuia a terra a “homens bons”, ou seja, brancos, cristãos e pais de família. Várias leis locais de compra de terras, de educação e de empregos acabaram por marginalizar o negro, diz o historiador Ramatis Jacinto.

Leia a matéria abaixo publicada no O Globo em 6/4/2013.



SÃO PAULO. A historiografia há muito analisa as dificuldades de o negro recém-liberto pela Abolição (1888) — ou por variados tipos de alforrias concedidos antes dela — se inserir no mercado de trabalho nas principais cidades brasileiras. Dois estudos recentes da Universidade de São Paulo (USP), abrangendo os anos de 1830 a 1920, explicitam, de forma detalhada, obstáculos enfrentados por escravos, libertados (antes da extinção da escravidão), libertos e seus descendentes na cidade que, nesta mesma época, virou o motor do capitalismo e a protagonista do fim da monarquia no Brasil (1889): São Paulo. Num tempo em que a opinião pública volta a se referir ao período da escravidão para saudar ou fazer ressalvas à PEC das Empregadas Domésticas, “olhar para o que aconteceu lá atrás pode ser muito útil”, diz o historiador Ramatis Jacino, autor de uma das pesquisas.
Ainda mais se levarmos em conta alguns dados. Segundo o IBGE, 51% da população brasileira são negros ou pardos — número que deve ser maior, já que o Censo é auto-declaratório, ou seja, o pesquisado é quem marca, no questionário, de que cor ele é. Das 7,2 milhões de pessoas no serviço doméstico no Brasil, 92% são mulheres e pelo menos 60% são negras. A avaliação bianual realizada desde 2001 pelo Instituto Ethos nas 500 maiores empresas do Brasil mostrou que, apesar de o índice estar melhorando ao longo dos anos, em 2010 apenas 5,3% dos cargos executivos e 13,2% dos de gerência eram ocupados por negros ou pardos. Se a História está sempre sendo construída à luz do presente, como olhar para trás?
No Arquivo do Estado, Jacino pesquisou dados de mais de 43 mil boletins de ocorrência (BOs), de vítimas e agressores dos mais variados delitos, registrados na cidade de São Paulo entre 1912 a 1920 — período que, para ele, retrataria as condições da primeira geração de negros nascida após a libertação. Após a Abolição, os BOs eram os únicos documentos que continham tanto a cor quanto a ocupação dos habitantes.
Lavadeiras e ‘barraqueiras’
Os dados das ocupações dos negros foram comparados aos coletados pelo Censo de 1872, o primeiro realizado em nível nacional e o único da monarquia. Chamaram a atenção de Jacino: ele não encontrou nenhum boletim de negros “vagabundos”, ou seja, sem nenhuma ocupação. Todos tinham um trabalho,uma ocupação, “ao contrário de parte da bibliografia que frisou que o negro foi dado ao ócio”. Só que eram subempregos, de pouca qualificação: carregadores, lavadores de casa, domésticas e as famosas lavadeiras.
— Por causa delas herdamos a expressão “boca de lavadeira” como sinônimo de “barraqueira”. Elas eram mulheres livres e muito insubordinadas às elites locais — conta o pesquisador.
Em 1872, escravizados chegaram a ter profissões mais diversificadas como amas de leite, herbalistas, ou até ocupações “letradas”, que exigiam alfabetização, como arquivistas, professores, jornalistas, médicos, cirurgiões — uma contradição, segundo Jacino, porque o Censo não mostrou que havia escravos sabendo ler e escrever. Muitos estudaram com patrões ou em organizações abolicionistas, clandestinamente.
— Atribuo esta perda de mercado de trabalho a uma elaboração ideológica racista, mais do que comprovada, pela qual se hierarquizou os seres vivos. Analisei vários autores, assim como anúncios de jornais pedindo trabalhadores que não fossem “pretos”. O poder público ainda fez questão de distribuir a terra a “homens bons”, ou seja, brancos, cristãos e pais de família. Várias leis locais de compra de terras, de educação e de empregos acabaram por marginalizar o negro — avalia Jacino.
Questões como o elevado número de imigrantes que o Brasil recebeu na Primeira República (1889-1930) também entram como desencadeadores deste processo em São Paulo, mas também em cidades como Rio e Recife.
— A Primeira República foi um processo de muita luta política, muitas manifestações sociais importantes, mas ao mesmo tempo foi um republicanismo muito frouxo, que não pensou na inclusão social. Não houve, e nós até hoje herdamos isso, um grande movimento por direitos civis — diz a antropóloga Lilia Schwarcz, organizadora de “História do Brasil Nação” (Objetiva).
A exclusão começou mesmo antes do fim da escravidão, é o que mostra o trabalho da historiadora Marília Ariza. Ela analisou um dos muitos tipos de alforria negociadas pelos negros antes de 1888: os chamados contratos de locação de serviços. Os contratos foram sendo autorizados como forma de aliviar as tensões abolicionistas: os trabalhadores podiam comprar o direito à liberdade. Só que, sem recursos para pagar os patrões, contraíam dívidas por meio de contratos registrados em cartório. Mais de 50 desses documentos foram avaliados por Marília.
— Muitas vezes as dívidas eram com o próprio patrão, e as eventuais pequenas economias dos escravos não eram suficientes para pagar pela alforria. A moeda era mesmo o trabalho. Os contratos eram extremamente desvantajosos. Apesar de livres, os negros praticamente trabalhavam da mesma maneira do que quando escravos — conta a pesquisadora, que estudou ainda as chamadas ações de liberdade.
Foi assim que se deparou com histórias como as de Bárbara e Carolina, “duas ex-escravas sem sobrenome e de muita fibra”, que conseguiram, com a ajuda de uma pequena parcela de advogados e juízes, melhorar seus contratos de locação de serviços.
— Elas passavam de credor para credor, mas aos poucos melhorando suas condições, trabalhando menos horas por dia e devendo menos dinheiro — reconstrói Marília, assinalando que várias ações em prol de libertandos foram assinadas por Luís Gama (1830-1882), o famoso abolicionista, filho de português com uma negra liberta, que aprendeu a ler e escrever, virou jornalista e rábula, formação não-oficial de advogado, porque negros e pardos, na época, não podiam diplomar-se nas universidades.
Professor da UFRJ e autor de vários livros sobre a escravidão, Flávio Gomes diz que esta “forma paternalista de se organizar o mundo de trabalho” se repetiu ao longo dos anos no Brasil. Segundo ele, há vários estudos em andamento, em cidades como Rio e Salvador, sobre a temática do mercado de trabalho e sua vinculação com a exclusão, a raça e o pós-emancipação.
—O binômio exclusão social-hierarquia criou uma sociedade fortemente excludente, embora se apresente como miscigenada e com mobilidade social. Minha surpresa, com a PEC das empregadas domésticas, é o fato de essas trabalhadoras serem uma categoria de “quase cidadãs” em termos de direitos trabalhistas.

http://oglobo.globo.com/historia/historiadores-comparam-pec-das-domesticas-ao-momento-da-libertacao-dos-escravos-8042539#ixzz2PmLVi9GD 

Um comentário:

Jama Libya disse...

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