7.4.13

A cidade dos terreiros

No interior do Maranhão, a cidade de Codó tem mais de 300 terreiro de Umbanda.

Os pobres pedem saúde, emprego e as mulheres maridos, os políticos votos!

"Bita do Barão é, nada mais, nada menos, do que o pai de santo da família Sarney. Conta a lenda que os tambores soaram dia e noite, por sete dias, nos idos de 1985,quando Tancredo Neves morreu e deixou a presidência da República ao então vice, José Sarney.(...) a longevidade de Sarney no poder serve como uma espécie de carta de referência a Wilson Nonato de Souza, nome de batismo de Bita, condecorado comendador da República Federativa do Brasil em 1988 (...) — Os políticos pedem voto, pedem para vencer e para encher o bolso de dinheiro. Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro!"

Leia a reportagem publicada em O Globo (6/4/2013):

Mestre Bita, Pai de Santo mais antigo de Codó no Maranhão

CODÓ (MA) — Num início de noite quente e cheio de pernilongos do inverno que quase não acontece em Codó, no Maranhão, distante 290 quilômetros de São Luís, Benedito Dias, de 53 anos, suspira:
— Ah, senhora, eu comando isso aqui mas tenho medo. Levo essa vida, essa sina, essa sorte que Deus me deu, mas não me acostumo. Nos outros a gente não teme, mas na gente...

Benedito é Mestre Bina, pai de santo na terra da magia, onde caboclos e encantados baixam diariamente nos mais de 300 terreiros deterecô, tambor da mata ou umbanda que se espalham pelo município do cerrado. O número seria maior se fossem computadas as numerosas “salas de trabalho” que funcionam em cômodos minúsculos, em casas cujas portas só se abrem para quem já sabe das coisas ou é levado por algum parente ou amigo.
A de Benedito é um casebre de chão de terra quase sem móveis. Bastam cinco passos para se alcançar o galpão de alvenaria onde Mestre Bina recebe seu encantado, Roldão de Trindade, e seu vodum, Estevão Légua. E o que acontece quando “baixa o santo”?
— Ave-Maria! Dá um tremor, uma frieza, um cansaço. Não sei o que acontece, só o que me contam. Eles chegam, recebem quem vem para a consulta, conversam com as pessoas, fumam e bebem. Falam com a voz deles. Sempre peço que não bebam muito... sinto muita vergonha.
Benedito foi descoberto médium aos 12 anos. Conta que quando criança não dormia direito, sentia gente lhe cutucando e fazendo cócegas até que sua mãe o levou a um pai de santo, que confirmou a “encantoria”. O diploma de babalorixá (pai de santo) é de 1995, pela Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros do Maranhão.
Incorporado o santo, Mestre Bina diz que pode fazer tanto o bem quanto o mal. Mas ressalva que não lida com matanças e só aceita fazer o bem. Encomenda um banho de ervas, acende velas, reza uma prece.
Na terra da encantaria, só os pais de santos mais poderosos e corajosos falam na dualidade de seus voduns — palavra que, na origem africana, define e personifica força ou fenômeno além da inteligência humana.
A matança a qual Mestre Bina se refere é o sacrifício de animais. Fazer maldades implica o uso do sangue. Quanto maior a dificuldade do pedido, maior a oferta. Mas pedir algum mal é risco. Quem se aventura no pleito deve saber que o caboclo, como também é chamada a entidade, assim como dá, tira, revida, castiga.A maioria dos voduns de Codó é de membros de uma família de deuses ligados à entidade Légua Boji Boá da Trindade. Légua é Legba no original africano. É o equivalente a Exu, associado ao demônio pelo cristianismo por ser “a única entidade negra que podia simbolizar acontraface do Deus onipotente, ou seja, a tentação dos pecados da carne em oposição à pureza do espírito cristão”, na explicação deYeda Pessoa de Castro, etnolinguista, doutora em línguas africanas e professora de línguas e culturas africanas no texto “De como Legba tornou-se interlocutor dos Deuses e dos Homens” (Caderno Pós Ciências Sociais — São Luís, v. 1, n. 2, ago./dez. 2004).
Enquanto o Legba original tinha caráter “capcioso e turbulento” e exibia um exagerado pênis em ereção, na adaptação para sobreviver ao mundo cristão tornou-se um preto velho respeitável e de cabelos brancos. E é assim que as principais entidades se apresentam até hoje em Codó, ao som dos tambores da mata e dos maracás.
Dançar é a chamada para que o santo incorpore. Na quaresma, os tambores se calam e as imagens de pretos velhos são cobertas nos altares. Os santos brancos do sincretismo religioso reinam absolutos em praticamente todos os terreiros da cidade de 118.038 habitantes, dos quais, ironicamente, 111.601 se declararam ao IBGE católicos (98.439) e evangélicos (13.162), restando à umbanda e ao candomblé apenas 650 indivíduos. Outros 3.921 moradores disseram não ter religião.
Pois é nesta terra de cristãos que Mestre Bita do Barão de Guaré reina absoluto no maior, mais conhecido e mais rico terreiro que se tem notícia no Maranhão. Idade informada de 90 anos e amplamente questionada por toda Codó, Bita do Barão é, nada mais, nada menos, do que o pai de santo da família Sarney. Conta a lenda que os tambores soaram dia e noite, por sete dias, nos idos de 1985, quando Tancredo Neves morreu e deixou a presidência da República ao então vice, José Sarney.
Sendo assim, a longevidade de Sarney no poder serve como uma espécie de carta de referência a Wilson Nonato de Souza, nome de batismo de Bita, condecorado comendador da República Federativa do Brasil em 1988. A honraria concedida por Sarney, estampada em foto, tem lugar de destaque na parede da loja, vizinha ao burburinho e aos urubus do mercado de Codó, onde Bita atende. Quarta-feira é dia de caridade, e ele atende de graça.
Na sala de espera atrás do balcão, desejos falam mais alto que o tempo de espera. Numa manhã de março, Maria do Socorro Guimarães, 51 anos, foi atrás de trabalho para o “esposo”, soldador desempregado há oito meses.
— Ele é muito acreditado. O serviço dele resolve — diz Maria.
Marcilene Silva, de 36, moradora de São Luís, conta que procurou Bita pela primeira vez em outubro de 2012, atrás de cura para o irmão, que estava bebendo demais.
— Vim só com o dinheiro da passagem e uma foto dele. Sou católica, mas a gente deve percorrer todas as portas para que Deus abra uma. Pensei: “Se ele é o melhor macumbeiro do Maranhão, vou lá.” Paguei R$ 400 pela consulta. Meu irmão bebia dois litros de cachaça numa noite. Agora está bem melhor, conseguiu passar cinco dias sem beber — diz Marcilene, enquanto espera por mais uma consulta, desta vez de graça, e pela próxima etapa do tratamento espiritual do irmão.
Sonolentos, concentrados ou apreensivos, todos aguardam pacientemente a vez. O curioso é que ninguém na antessala de Bita do Barão se ponha a fuxicar as prateleiras. Também ali, os santos brancos predominam no alto, acima das dezenas de garrafas de banho coloridas com rótulos promissores como “Amansa corno”, “Chora nos meus pés” e “Arranca toco”, este último indicado para depressão. Há ainda essências como “Pega Homem”, “Corre atrás de mim” e “Faz querer quem não me quer”. Nascido no antigo povoado de Santo Antônio dos Pretos, Bita é do tempo em que dançar para o santo era caso de polícia. Apanhava e ia preso. O apelido vem de “cabrito”, porque pulava muito quando criança. Barão de Guaré é a entidade de representação branca que dá poder ao homem que anda descalço, controla a família com autoridade de provedor e dança para santos e encantados com roupas coloridas, repletas de bordados.
Ele tem pelo menos 500 filhas de santo que o seguem em busca de preparo espiritual. Sim, porque quem é médium e não dança para o santo sofre dos males da encantaria. Orixás e encantados são dados a estripulias.
— Aparecia tanta coisinha em sonho. Via na parede, descendo pela rede. Coisa de desenho animado. A cor era só no beiço. Tinha vermelho, azul — conta Raimundo Nonato da Silva, Mestre Café, que com apenas 30 anos é um pai de santo respeitado e mensageiro do preto velho Cipriano, de Rosalinda, de Baronesa e de Oxum Caveira, seu vodum de “esquerda”, numa associação curiosa, onde o do bem é reconhecido como de “direita”.
Um pai de santo recebe entidades masculinas e femininas, uma espécie de rendição do super-homem. E quem não se renderia aos encantos da Pombajira, dona das encruzilhadas e padroeira das prostitutas personificada em dona Maria das Neves Silva, 55 anos. A R$ 100 a consulta, mulheres fazem fila no portão. Não estão em busca do fugidio amado, mas de um segundo homem, amante fogoso. Ela conta que pedir amantes tem sido algo corriqueiro em Codó.
— Quando bate no portão já sei o que é. Meu guia é João da Mata e Maria Molambo, a Pombajira. Uno casais, caso e descaso. Nunca passei vergonha — assegura Maria, de vestido vermelho, na saleta onde imagens de santos quase enforcados em colares coloridos, as guias, se emparelham com garrafas de cachaça, espumantes baratos e perfumes.
Aos 41 anos, Sílvia Maria da Silva comanda a Tenda São João, no topo de um morro. O terreiro é de alvenaria. A casa onde ela mora é de taipa. Começou a dançar aos 13 anos, e sua cabocla Jacira até agora não garantiu água encanada a ela e seus vizinhos. Sem cobrar de quem a procura, Sílvia espera por doações que só chegam vez ou outra.
— Jacira é carrasca — define.
Nenhum lugar do mundo parece expor tantas flores de plástico, em todas as cores e formas, do que os terreiros de Codó. O de Bita é cercado por imagens de santos em tamanho humano. Rosário da Conceição, 57 anos, é outra à sua espera. Acendeu uma vela de três dias para trazer alguém de volta. Não deu. Acendeu uma de sete. Tampouco.
— Vim com fé que ele vai resolver. Caso contrário, não faço mais nada — diz Maria, ao lado do marido.
O Bita do Barão que recebe a reportagem é um homem carismático, gentil, de olhar profundo e disposto a explicar um poder que, no fim das contas, é baseado na fé — imensurável, inexplicável e individual. Discreto ao falar sobre Sarney, elogia a inteligência do senador e lamenta que já não tenha mais tanta saúde. Sobre o assédio e os pedidos que, dizem, são feitos aos montes por políticos do Brasil inteiro, é direto:
— Os políticos pedem voto, pedem para vencer e para encher o bolso de dinheiro. Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro!
Bita e Café, o mais velho e o mais novo dos pais de santo codoenses, fazem coro ao dizer que, ultimamente, tem mais gente pedindo o mal do que o bem. Voz suave, olhar seguro, Café faz tocar os tambores e incorpora “seu Cipriano”.
— Chegou pedindo, estamos aqui para fazer — diz o caboclo, entre uma baforada em seu cachimbo, um gole de cachaça e uma cusparada.
Uma faca com restos de sangue, semioculta numa casinha de tijolos à frente da tenda de Café, revela que o trabalho da noite anterior foi de sacrifício. A tartaruga que um dia antes andava pelo terreiro sumiu.


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