6.4.09

O Burro-Velho, o mulato e o espelho


Depois de ler a crônica "Quem tem raça é cachorro" do João Ubaldo no jornal O Globo de domingo (05/11) algumas metáforas zoológicas também me vieram à mente como lembranças de alguma coisa bucólica como as que o escritor talentoso tornou meio de vida. 

João Ubaldo um "branco baiano" é mais um ideólogo da mulatice contra as cotas raciais e a identidade negra  

Não é birra de domingo, mas foi assim que tudo começou neste dia arrastado de meia-estação quando o Carlinhos me telefou para dizer que falaria comigo só depois que eu lesse o Ubaldo no Globo.
Tá, bom, vou ver, disse sonolento as 12:30. Mas como eu não leio mais jornal impresso, vou tentar na internet. Lembrei de um blog porreta que tem os artigos diários de um monte de colunistas dos jornalãos e lá estava a tal crônica: "Quem tem raça é cachorro"
O Carlinhos tá querendo me zoar, ele não sabe que eu deixei de ler o Burro-Velho por falta de paciência com suas reminiscências Itapariquenses como cenário do seu mundo Ubaldiano? 
Mas a sensação de pasmaceira prossegue com a capacidade que o festejado Ubaldo tem de dizer umas coisas tão burras no meio da sua prosa temperada com aquele molhinho baiano que passeia do apimentado ao quindin e que é exposto num cenário tropical para seus leitores sonolentos de domingo.
Prosseguindo a leitura do "Quem tem raça é cachorro" acabei percebendo algum ar resignado como o de um velho tigre de bengala mas que ainda ruge para gatinhos.
E toma chavão daqui, dalí, umas metáforas, o tema é polêmico, palpitante, excitante, então toma uma insinuação, uma palavra ambígua para causar uma certa provocação. Mas sem o gingado de um mestre que quer mostrar a verdadeira essência do jogo ele se deixa levar pela aparências, pela ilusão do espelho baiano que vê no mestiço uma espécie de 'alma lavada' das impurezas do negro. 
Como num essencialismo invertido onde a imagem refletida parece ser o real o autor de Viva o Povo Brasileiro desde que o tema virou enredo de escola de samba passou a acreditar mesmo na imagem do espelho. Daquela aparência que serve prá explicar a nacionalidade em vez de servir para perguntar que nacionalidade é essa que quer excluir a identidade negra como se fosse uma antítese nacional e não uma síntese.

Os escritores todos nós sabemos são algumas vezes profetas, justos sonhadores e entre outras possibilidades também são canalhas.

Depois que o grupo dos 113 contra as cotas raciais lançou seu manifesto se iniciou a partir daí o combate anunciado, diga-se de passagem como uma espécie de 'Cruzada anti-cotas' que é apenas a superfície de um outro combate à identidade negra. 

Não é a questão de dizerem o que pensam ou reivindicar a identidade que desejam, isto é um problema deles.  O que destoa primeiro é a vantagem nos recursos materiais disponíveis e oferecidos pela grande mídia, mas o que se ressalta mesmo é a insuficiência do texto nos argumentos utilizados contra, não consigo entender o que querem, mas ao menos consegui entender o que não querem: as cotas raciais.

Saudosos dos bons tempos do povo cordial, querem imputar um viva! ao povo brasileiro como uma mordaça que deve conter qualquer expressão autônoma de construção de novos sujeitos e novas identidades.  Pretendem uma identidade nacional construída com os estereótipos da Casa Grande. Apresentam-se sem pudor como herdeiros do velho universalismo, refletem-no como uma espécie de bonachões da história nacional, o mainstream da nacionalidade, são os caras que deram certo e resolveram se intitular os guardiões dos princípios da identidade nacional inspirados pelo figurino colonial do 'negro bom para o eito e da mulata boa para o leito' ou outras preferências.

Conservadores de cepa à esquerda ou a direita, não importa muito a coloração (ops!) ideológica, sua identidade brasileira é tão autêntica quanto a dos que querem negar. 

Mas o "velhote ranzinza" como ele mesmo se intitula na crônica e eu diria com menos indulgência, o Burro-Velho, resolveu então explicar o que é "raça" supondo que é isso o que os cotistas e o movimento negro pensam de si: que são uma raça como os cachorros. Afinal, o que é que eles temem? Serem na sua mestiçagem confundidos com negros como ocorre quando vão para a Europa ou a América?

Foi se valendo da frase do Zecamunista um velho pelego de esquerda e evocando outros velhos espíritos que o inspiram ou atordoam que o Burro-Velho usou mais uma vez para se lançar ao combate: é o que ele declara dizendo que vai apelar para "grossuras".

Para certas experiências e conhecimentos o Burro-Velho é confessadamente ignorante como comprovou o Zé da Honorina quando perguntou a ele o que era "negritude" e "irmandade" entre os negros.

Sem saber o que responder, insinuando o que não consegue entender, vai falseando a realidade da qual é sofrego sorvedor como o outro baiano Caetano. E coçando a ponta do nariz que além de já estar vermelha deve ter crescido também, assim o Burro-Velho assume sua grossura. O pudor, a vergonha devem ser a mesma com a qual se oculta, subtrai e joga fora aquela foto que falta no álbum de família, a mãe-preta ou o pau preto que precisam esconder da descendência porque não tem a consciência sã dos desejos que o antecederam e que não podem assumir pela vergonha que se converte em racismo ou seria o contrário?

São os mesmos com seus "amigos africanos" que no Velho Mundo e na América são vistos com o estranhamento com que aqui eles enxergam os cotistas. Só que aqui estes estranhos - os negros do mundo - vem perdendo o medo, o desasossego da imagem depreciada e imposta mas que se assumiram como protagonistas da própria da história, enquanto eles insistem dizendo:-" não sejam negros, sejam mulatos!" 
Dizem algumas vezes com certa modéstia e uma espécie de tributo aos seus fantasmas, que são mestiços assumidos na cor e na cultura; mulatos são os outros que se querem negros. Porque será que querem assumir esta imagem dos violentados, expropriados, de senzala, ralé, será uma identidade da revolta, de insubmissão? Nós - eles dizem - os bons dessa história, da aceitação deste destino escrito pela cor da pele queremos ser apenas mestiços, a meta-raça que redime. E felizes já aqui somos brancos, já que esta mestiçagem nos redime da identidade negra, essa marca que vocês querem relançar. Atônitos partem para um argumento infantilizado - afinal, escrevem para uma classe média emburrecida e nisto tem razão - alegam: quem tem raça é cachorro! E esperam com isso sensibilizar os medíocres da opinião pública para barrar as cotas. Mas aqueles que exigem as cotas sabem bem da "raça" que proferem: é aquela mesma que ele o Burro-Velho não soube explicar ao Zé Honorina: negritude e solidariedade. Aquela que estes negros ancestralizados e modernos na sua imagem, que pressentem a África, a raça por eles inventada e depois de imputada querem agora apagar das memórias para os confundir depois que subtraíram seu trabalho e a dignidade. 
O que podem saber estes negros se não o caminho de volta ao encontro do outro lado do espelho. Da "outra cena" que como dizia Lacan para burlarem seu "saber paranóico" que impuseram da essência pela aparência?
Aliás, mulo que resulta no mulato é quem mais se assemelha biologicamente a uma raça como os cachorros.
Já os negros assumidos e não aqueles da cor que espantam os seus olhares, de fato não são uma raça como seus cachorros, estes negros são uma comunidade simbólica que se identificam e se orgulham de uma ancestralidade africana e que promovem uma ideologia de resistência e de libertação. De fato não são uma raça, não são os cães da história.

Um comentário:

Anônimo disse...

Brilhante,Ricardo! Se a grande mídia, que sempre nos negou e / ou estereotipou, só dá espaço aos ideológos anti-negros, temos que usar nossos espaços alternativos da melhor maneira possível, para afirmar a nossa posição, o nosso direito à identidade e à igualdade.

Parabéns pelo texto.

Silvany

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